10/09/2012

morangos com cultura


O que está em jogo no debate cultural português, aqui e agora, 2012, não é saber o que se inscreve na cultura e o que fica de fora, supostamente entrando no espaço intocável (?) e inimputável (??) do divertimento. O que a ideologia de esquerda foi recalcando, acabando por ser consagrado pelos discursos de quase todas as forças sociais e políticas (a começar pelos partidos de esquerda e de direita), é um facto seco e linear: nenhuma intervenção pública é exterior à cultura. A cultura não é necessariamente um lugar de apaziguamento colectivo, mas sim um palco permanentemente agitado pelas diferenças que nele se explicitam.
Por alguma razão, o debate em torno do futuro da RTP é, globalmente, tão pobre. A noção de “serviço público” tornou-se mesmo um mero avatar ideológico (mais uma vez de esquerda & direita) através do qual se mascara uma dramática ausência de verdadeiros projectos políticos para o espaço televisivo – décadas de indiferença (política) em relação à televisão como peça central da dinâmica social não poderiamdar outro resultado.
Neste contexto, Morangos com Açúcar promove uma visão patética dos jovens como totós muito contentinhos, de sexualidade sempre imaculada, que conseguem proferir três devastadoras banalidades em cada conjunto de duas frases (supondo que, em algum momento, se passa da preguiça do soundbyte para a exigência da frase). Isto para além de explorar uma estética de imagem/som que nada mais tem para dar a não ser a retórica dos mais banais dispositivos publicitários. Ora, importa dizer algo de muito simples e radical: tal visão é eminentemente cultural, já que produz e consagra valores existenciais, valores de representação, valores de comunicação.
O problema não está em proclamar que qualquer filme de Manoel de Oliveira é melhor que Morangos com Açúcar (quem quiser dizer o contrário, que o faça). O problema está na cedência ideológica que a esquerda protagonizou – e, não poucas vezes, promove através de uma cega boa consciência –, gerando esta apatia social: tudo o que é medíocre, repetitivo e adequado aos valores mais fortes do mercado parece estar ilibado de qualquer responsabilidade social; tudo o que, artisticamente, escapa ao império dos estereótipos surge imediatamente recoberto por um véu de suspeição.
No limite, perdeu-se pelo caminho um dos valores viscerais do frágil e contraditório imaginário do 25 de Abril. A saber: o de que importa pensar tudo, incluindo a economia, em termos culturais.

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